Saudo-o
novamente por meio dessas linhas enviesadas de fé e sujeira humana. Me perdoe
mais uma vez, pela minha forma breve. Já não sei o que isso pode ser, a página
de um diário, uma carta, um bilhete ou apenas um rascunho que jogarei fora. Me
perdoe também pelas folhas amareladas e roídas de traças, eram minhas ultimas
folhas sobrando, a ânsia por te escrever foi maior do que o capricho e a
delicadeza esperada.
O frio chegou
nessa cidade. Forte e assolador, as temperaturas baixaram rápido, tirei todos
os meus casacos guardados do fundo do roupeiro junto com as meias de lã e os
cachecóis. Não sei se será assim por todo o outono e inverno. Minhas mãos estão
geladas e meu nariz vermelho. Fazia muito tempo que não provava dessa sensação,
depois de dias e dias de calor e céu em brasa.
Caminho pela
cidade, no meu passo diletante e perdido de sempre. Não te encontro mais nas
esquinas como te encontrava antes e nem nos rostos desconhecidos dos passantes
que atravessam os mares de gente. Tudo mudou, a atmosfera e o cheiro das ruas
mudaram. Percebo isso ao sair de um café às sete da noite, o vento beijando
minha tez, fazendo voar meus cabelos para todas as direções e aquela profusão
de sensações, frio, cheiro de fumaça tisnada, céu escuro, luzes de postes,
motores de carros, sirenes ao longe, conversas alheias de gente que passa com
pressa pra pegar o ônibus e voltar para as suas casas, lojas fechando, o dia
chegando ao fim, o termômetro preso numa esfera nova e fria.
No compasso da
solitude eu vou ribombando, cada vez mais só. Nua, eu atravesso a cidade. Nua,
eu ultrapasso as edificações cruas de concreto negro. Foram muitos passos, meu
caro amigo. Por você, eu me desfiz das minhas máscaras. Por você eu me lavei de
humildade, coisa essa que eu nem sabia o nome, só pra te saber tocar. Percebo,
eu em mim mesmo. O coração é meu, é quente, é duro, é coisa. Choro por dentro. Esse
troço duro no peito lateja, lateja, e eu me desmancho sem som.
E
o vazio? Ele me cerca. O vazio da tua tão chegada partida. Quem partirá
primeiro? Somos como dois tolos, remamos no mesmo barco, em sentidos
contrários. Nos extenuamos, aos sôfregos e sem fôlego, paramos à beira mar,
perdemos nossos remos. Quem será o primeiro a se atirar no mar e nadar? Iremos
juntos? Teremos coragem de dar braçadas contra essa maré insana que se levanta?
Não
sei. Na praça eu vejo crianças com suas mochilas coloridas, doces nas mãos,
correndo, os pais atrás, caminhando no passo cansado de quem teve um dia cheio
de trabalho. Os vendedores estrangeiros recolhem suas mercadorias. Sorrio para
um deles, que já me conhece de tantas vezes que já me viu passar por ali. Eu o
cumprimento, ele me cumprimenta. Continuamos em nossas dores individuais no
percurso incoerente de existir.
Ó,
meu caro amigo, o que foi que aconteceu com você?
Perdoe-me
pelas perguntas vagas. Essas perguntas vazias e que não possuem respostas,
perdoe-me por perder a linha, ter descompassado tanto nessa valsa que era
nossa, mas que agora, assim, acabou, ou acaba. Dois descompassados loucos.
Você, um desculpante que não se contém, eu uma neurótica, insana.
O
que te dizer? Não sei. Nem carta isso pode ser. Mesmo assim te escrevo ainda
mantendo todo o capricho numa letra de tinta negra, à mão, feita pelas minhas
frias carnes.
Não
te digo mais nada. Só que sinto saudades. Oras, já me dói a sua partida que
ainda não aconteceu, mas que prevejo. Sinto na pele como tempestade que se
aproxima. Sinto saudades agora, prematuras. Do teu rosto e do teu cheiro. A musica
ficou tocando sozinha no meio do salão, aquela valsa antiga que você e eu já
conhecemos bem.
E
eu? Eu continuo, no meio da multidão. Amigo, talvez daqui um tempo você não me
reconhecerá mais, serei outra, diferente. Ou deixarei de existir e me tornarei
poeira. Não importa. No instante agora, eu continuo. Continuo, continuo,
continuo. Nua. Sem nada. Só, como eu só sei ser.
P.s: I wish you’d never forget
the look on my face when we first meet.
Annabel Laurino
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