sexta-feira, 20 de novembro de 2015

A vigésima primeira epifania

Não sei e já não se sabe quanto tempo passou desde que estive aqui. Não se sabe também como minha face alterou-se tanto nos últimos meses, nem como meu cabelo ora penteado, ora desgrenhado, tornou-se um emaranhado de fios confusos e difusamente sem ordem. Estaria eu me perdendo de mim mesma? Creio que não.
 Inclino meus olhos bifurcados de cores que não sei dar nome em direção a um futuro contínuo, vou sempre em frente, minha hora é agora e a cada dia que eu me renovo, encontro-me em mim através do meu próprio eu. A busca incessante da minha primeira essência, o encontro com o meu verdadeiro ser, sem cascas, sem máscaras, eu nomeei isso de liberdade e sorri jocosa para o meu reflexo cintilante no espelho do banheiro.
O dia amanheceu cheio de luzes brincalhonas que acariciaram cálidas a minha pele recém desperta. Foi no sol do meio dia que eu dediquei meu momento de completa gratidão, e foi no mesmo dia, porém com o sol dando seus adeuses bruxuleantes de luzes que se esvaem na companhia de carros que somem das ruas, que eu pude perceber o quanto tudo mudou e que agora, depois de um longo ano, as conotações dos cenários são outras, as paisagens tomaram formas singulares e as cores, bem, as cores já são diferentes desde que os ventos mudaram também.
Mas do que venho falar afinal? Eu não sei. Beijo calidamente minha caneca de café e sinto o sabor da bebida presentear minha boca, aglutinar os recônditos escondidos do meu paladar com seu gosto ferrenho e intenso. Café sem açúcar, isso é novidade ainda, mas gosto disso e sinto-me bem enquanto identifico a bebida escorrendo pela garganta. Nesse momento mesmo, prendo os cabelos no alto da cabeça com um lápis verde e direciono meus dedos inquietos à essa máquina que talvez, e só talvez, irá me traduzir com maior maestria do que posso esperar, e assim espero. Se por um lado não sei do que venho falar, de outro eu sei que preciso me delinear com contornos mais exatos para ser breve e precisa, clara e objetiva, mesmo que minhas linhas sejam tortas e meu riso; infantil.
Vinte e um! Não ouvi Beatles até agora, não fiz minha dancinha da guitarra imaginária – você se lembra dela? Creio que sim... – e nem contei estrelinhas no céu fazendo um pedido com cada uma delas. Até porque choveu hoje, choveu o dia inteiro, teve água entrando pelas solas das minhas sapatilhas e gotas gordas de chuva prenderam-se na minha meia calça preta. Chuva inesperada e santa, ô chuva, que veio me visitar!
Tenho tantas histórias para contar, mas histórias que não são sobre mim, reservo uma em especial e dedico os nódulos dos meus dedos encrespados de verdade para trabalharem com voracidade e afinco, porque é isso que sei e que posso fazer e que escolhi fazer, contar histórias.
Passo os dias ruminando no insólito da minha mente, vagando passos dentro de mim, percorrendo lacunas vazias, preenchendo espaços, mastigo historinhas, vislumbro o incerto e recrio tal como convém recriar. E claro, há certo preço em contar histórias que não são suas, o meu é de sentir as dores, e sinto muitas, mas sou leal no que escrevo e por isso escrevo ainda mais, com nós nos dedos e lágrimas espiralantes no rosto, eu continuo.
Minhas pálpebras estão cansadas, mesmo assim eu continuo. Desta vez não estou contando uma história, estou apenas me contando, não por inteira, porque não posso caber em um espaço tão enquadrado como esse, nessas linhas, nesses pontos e dentre essas vírgulas. Mas estou me contando um pouco, uma parte de mim. Eu e eu mesma, afinal de contas, sou só eu e Deus dentro desse quarto de pouca luz, sou apenas eu com meus braços brancos esparramando-me languidamente por através desse ritmo desconexo de vocábulos perdidos.
        Não sei porque continuo, estou diante de uma parede que não posso ultrapassar. Mas digo-te sem presa, as entrelinhas são suas também e aquele que lê saberá compreender os códigos febris das minhas secretas reentrâncias. Agora, depois de dizer-te tanto já não sei se continuo, tornei-me vaga, e eu não desejava isso, queria ser breve e precisa. Continuamos.
            Da janela do trem eu vejo as ruas, ensopadas, vestidas em águas que caem do céu. Tanta gente com seus guarda-chuvas abertos, tanta gente com passos truculentos e trepidantes, perdidos em si. Eu por um lado, diletante e mesmo assim confusa, deixo-me ser levada pelos trilhos desse trem que os percorre a todo vapor, sem parar. A chuva escorre pelos vidros frios, as nuvens carregadas, um céu todo cinza, uma tarde de primavera em um novembro tisnado de saudades, é essa a cena, corta.
A outra cena sou eu, veja. A cena sou eu sendo levada por esse trem, e agora o trem já se foi e lá se vai o trem, a fumaça sobe condensada pelo ar, um ar pulverizado de cristalinas cores, esfumado de perfumes, esvanecido de flores, no lusco fusco das dores, lá se vai o trem. E aqui vou eu, dentro desse trem, registrando as minhas epifanias nervosas, te subscrevendo discretamente. Corta.



Annabel Laurino








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