Elisa estava
apaixonada. Isso sim era uma notícia e tanto para ser primeira página do jornal
local daquela cidadezinha pacata, mas cheia de marginais. Elisa estava com
borboletas espiralantes batendo asas alvoroçadas em seu estômago. O flautista
que tocava todos os dias no centro da cidade escolheu Fly Me To The Moon do
Sinatra especialmente na hora em que Elisa passava antes de ir para o trabalho
naquele dia, e sorriu, mesmo sem receber uns trocados em sua caixinha preta e
esfarrapada. Se foi coincidência ou não, não se sabe, mas a música a fez
flutuar romanticamente, imaginando cenas perfeitas, beijos estalantes, frases
retiradas de filmes antigos, mas que dessa vez, em sua imaginação, saíam de sua
própria boca, como uma romântica desenfreada no auge de sua paixão, como em
Cinderela em Paris, ela era Audrey Hepburn.
Estava
apaixonada há vinte e duas horas, trinta e quatro minutos e vinte e três
segundos. Era um recorde. Sentia-se extasiada, era como experimentar uma droga
e para ela, que nunca havia provado nada de inovador e exótico, além de um café
bem forte e um cigarro amargo, essa droga, a paixão, a fazia sentir-se em
êxtase, como se sua mente estivesse fora do ar.
Por isso naquela
manhã de uma quarta feira cinzenta e fria, acordou sem se incomodar com o
barulho incessante do despertador. Sem se importar até mesmo com sua franja que
estava um pouco torta, na verdade parecia até mais bonita assim, meio amassada,
julgou-a espontânea e de um visual beirando ao rock 'n roll, combinou
perfeitamente com sua saia preta e sua camisa azul royal, com suas meias
escuras e charmosas e seu casaco pesado, estilo londrino. Não se importou, ou
não deu a devida importância para a sua vizinha parada no portão, que sempre
espichava os olhos aguados de uma velha muito velha para a sua saia que fazia
questão de dizer bem alto como estava curta, e nesse dia em questão o fez com
uma rabugice desprezível, mas que Elisa nem percebeu. Também não ligou para o
fato de ter que ir em pé no ônibus, quando deu por si já estava no centro da
cidade e todos os passageiros pulavam para fora do ônibus, apressados.
Era maravilhosa
aquela sensação. Sentia-se como se tudo ao seu redor fosse dar certo, como ser
abraçada por uma gigantesca nuvem de Felix Felicis. Essa sensação aumentou
ainda mais com o seu chefe parado em meio ao escritório observando-a entrar,
soltando um bom dia alegre e elogiando seu cabelo, havia feito algo? Não,
respondeu sincera e feliz, não visitara seu cabeleireiro naquela semana e
agradeceu estupefata.
Ah! Como são
fervorosas as sensações da paixão. Tão cáusticas e intrepidamente ressonantes no
peito daquele que o sente. Elisa não podia evitar, não o pode, nem mesmo quando
deu por si e percebeu que havia algo de diferente entre o caminho do coração e
da sua mente. Não conseguiu e nem mesmo tentou, para falar a verdade, expulsar
aquele intruso de dentro do seu corpo. Era profundo aquele ressoar gostoso de
uma onda viva e dourada, cheirando a lavanda e almíscar. Todos os dias podiam
ser cheirosos assim, decretou inebriada.
Porém é válido
ressaltar de que embora Elisa se encontrasse assim tão ineditamente apaixonada
e que essas sensações ludibriantes assolassem seu peito, agora inflado de um
amor súbito e ferrenho, ela estava inebriada demais para perceber as causas
amargas desse sentimento tão único. Não havia percebido o outro lado da moeda
até aquele momento fatídico, não havia se questionado, indagado o desabrochar
daquela paixão.
E foi assim, com
uma pergunta simples, no momento em que grampeava um documento ao outro,
sentada no escritório da rua 24 com carpete marrom e manchado, rodeada de seus
colegas, ouvindo o barulho estridente de um telefone que não parava de tocar,
que a moça firmou seus pés no chão.
Não sabia como
isso tinha começado, como ou em que momento ao certo ela se deu por conta de
que estava apaixonada. Não saberia dizer. E por isso perguntou-se: Por que me
sinto assim tão feliz? Esse sentimento irá acabar? Eu continuarei feliz assim?
Um sufocamento novo e contrário a toda aquela felicidade começou a apertar em
seu peito. Sentiu-se tonta com a leve percepção de que tudo isso, todo esse
sentimento, toda essa felicidade, poderia ruir em segundos. E se ele não a
amasse? Estaria ele feliz como ela? Seus olhos antes tão estalados e
amorosos tornaram-se olhos de gato que rumina um rato dentro de um buraco na
parede, olhos investigativos e altivos.
Elisa sentou-se
estática na sua cadeira de trabalho, ficou fitando o longe, o outro lado da rua
através da janela do escritório. Imaginou seu amante naquele exato momento
apertando o nó de sua gravata e saindo para o trabalho, parando o carro no
sinal vermelho e assim que passasse uma moça bonita ele não resistiria de olhar
um bocadinho, só por um esporte costumeiro, então examinaria suas sobrancelhas
no espelho retrovisor e voltaria a dirigir.
E
ela ali, toda contente. O gosto que sentiu foi amargo e incisivo na sua boca
que antes era só doce. Sentiu-se preenchida por uma nova sensação áspera e
surpreendentemente quente, azeda e corrosiva. Imaginou-o com outra logo depois
que foi embora, imaginou-o mandando mensagens para essa outra, dizendo para
essa mulher o quanto a amava, da mesma forma que dizia para ela, nos momentos
de dizer adeus. Se sentiu tonta, magoada, enganada, quase chorou. As perguntas
não paravam de rodopiar em sua cabecinha escura, e se ele estivesse fingindo
amá-la? E se, e se, e se...
No final do
expediente da manhã Elisa estava decidida: iria romper com tudo. Seu sentimento
que antes era florescente e feliz agora era algo caótico e destrutivo,
sentia-se louca, amarga, desesperada. Não era mais Audrey Hepburn, mas Zelda
Fitzgerald no limiar de uma loucura, de um ato insano, iria saltar no Sena,
jogar-se no rio. Olhou para todas aquelas mulheres, suas colegas de trabalho, observou-as conversando com os outros homens, a maneira como flertavam e riam para
os clientes que entravam no escritório, imaginou se alguma daquelas mulheres
seria a biscate, a outra, a que ouvia os elogios amorosos que ele lhe dava.
Quando Elisa
saiu para o horário de almoço a música que tocava em sua cabeça era She’s lost
Control do Joy Division, muito diferente das melodias harmoniosas e da voz
quente de Frank Sinatra. Agora em seu peito um ciúmes doentio incidia
acompanhado de uma vontade enlouquecida de descobrir toda a verdade, mesmo que
apenas em sua mente ela se fizesse verdadeira.
Ponderou que
agora tudo fazia sentido. Quando ele não atendia o telefone ou nos finais de
semana em que arranjava uma desculpa de trabalho por não poder vê-la e até mesmo
as várias flores que ele lhe dava acompanhadas de presentes caros e bonitos,
todos os mimos, tudo parecia um amontoado de pedidos de desculpas por algo que
ele vinha fazendo.
Caminhou sem
rumo predestinado em direção ao calçadão. Seus passos que antes eram leves e
flutuantes, agora eram pesados, com os saltos de seus sapatos batendo
retumbantes no asfalto. Passou reto pelo flautista negando seu cumprimento
sorridente, deixando-o para trás com um semblante confuso, sem entender nada.
Ele que se danasse, pensou Elisa, podia ser mais um desses homens cafajestes e
mentirosos, estava farta dessa raça.
Aquela sensação
romântica agora era apenas uma lembrança distante em sua mente. Elisa sentiu-se
enganada, havia-se deixado preencher por aquele sentimento tão idiota,
escapista e burro. Como pode? Caminhou em direção à praça, passou por tantas
pessoas, tanta gente, tantas coisas, não viu nada. Foi o medo que bateu no seu
rosto junto com o vento gélido, foi o desespero que espiralou seus cabelos ao
dobrar a esquina. Elisa estava condenada.
Soube disso no
momento em que sentou-se no banco daquela praça. Folhas avermelhadas caíam
preguiçosamente no chão junto ao amontoado de folhas secas e quebradas,
pisoteadas pelos passantes, uma criança com uma mochila de super herói passou
acompanhada de sua mãe e sorriu divertida pra Elisa, pombas aglomeravam-se ao
longe, bicando os restos de pão deixados por alguém, um sol de meio dia batia
no seu rosto e o aquecia por inteiro, nuvens brancas carregadas de chuva
nadavam em um céu cinza e pesado, trabalhadores passavam rápido, apressados e
famintos em seus horários de almoço, o fluxo interminável carimbado em uma atmosfera invernal.
Estava marcada
por aquele sentimento, não havia como ir embora dele ou manda-lo embora. Aquele
sentimento... Sabia que não havia mais volta. Já tinha se entregado. Elisa, 22,
recém formada. Agora com o acréscimo de mais uma informação em seu currículo
social, estava apaixonada, louca, pirada, provando das duas faces desse
sentimento odioso e lindo, como foi tola.
Respirou fundo e firmou seus ombros
em um ângulo reto, levantou o queixo, quis xingar alguém, quis parar os carros
que buzinavam na sinaleira mais ao longe e gritar com todos eles, todas as
pessoas do mundo, dizer que estava feliz, muito feliz, estava in love,
puramente e maravilhosamente in love... Mesmo que doesse encarecidamente. Porém
não o fez. Se conteve, aprumou a bolsa no ombro e marchou, como uma soldada que
acabasse de receber sua missão.
Alecrim com
jujubas coloridas, chá mentolado no inicio da manhã de um sábado fresco, café
passado e pão de queijo às cinco da tarde, jasmim e damas da noite, água
batendo nas rochas, um vento fresco. Tudo isso acaba no final.
Annabel Laurino
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