segunda-feira, 3 de março de 2014

Sem Pertencer

    Sete da noite. Horário de inverno novamente, coisa boa. Eu saio do trabalho e está quase escuro. É uma delicia, eu penso. Não por estar escuro, não pelo horário, é toda a atmosfera que engloba o tudo. É aquele quase breu, as luzes dos postes se acendendo, a livraria da qual eu saio (o meu trabalho, o melhor trabalho do mundo, para mim) com quase tudo apagado, final do dia, vem um vento pela rua, aquela chuva indecisa que não sabe cair e nem ficar, as pessoas abrindo seus guarda-chuva, empunho o meu aberto, firme na mão e me encolho dentro da jaqueta. É tudo tão rarefeito, especial, nostálgico.
    Cada passo que eu dou agora é como um passo marcando algum número em milhão. Para onde vou? Para casa, eu penso. E talvez pudesse existir outro lugar para ir, dentre tantos! Mas não, eu vou para casa. A casa que me espera e que eu conheço, quente, amiga, cama familiar, meus livros, minha caneca favorita, cachorros e violão. Para casa. Cada passo que eu dou eu me perguntou, e se eu não fosse para casa? Não há outro lugar para ir, me convenço, e então eu rumo para casa. 
    Cada passo que eu dou parece tão óbvio, como se estar certo de que é manhã ou tarde. Você não sabe explicar porque exatamente essa ideia é tão fixa na cabeça, você nasceu, cresceu, te ensinaram assim. Ao longo disso, sempre, você sabe quando é manhã ou tarde. Assim como eu sei quando e para onde devo ir e simplesmente vou. Hoje é para casa, como tem sido ha muito tempo. 
    Uma hora ou outra você acorda e é de manhã, sol forte, sol lindo, sol socando sua cara amassada de sono e você deseja que ainda fosse noite, que ainda pudesse dormir mais um pouco. Não, mas é de manhã. Acorda. Acorda. A ideia é insistente, não tem como fugir.
    Um passo a mais e eu desejo fazer a direção contrária, mas não. Não, porque não é para onde eu tenho que ir e eu não tenho outro lugar para estar agora. Para casa.
    A ideia é insistente. 
    De repente eu quero reclamar de tudo, eu quero falar mal do cabelo de alguém, eu quero chutar o poste, derrubar o latão de lixo e falar um palavrão na cara de alguém. Infantil, sem graça, sem motivo, eu quero reclamar. Mas eu não tenho do que reclamar, eu tenho o melhor emprego do mundo, eu tenho casa, família, livros e musica, eu tenho uma vida e ela não é ruim. Mas mesmo assim, eu quero reclamar.
    Porque eu quero me livrar dessa sensação densa, grudenta, essa coisa pesada que não desce e nem sai logo da garganta, fica ali entalada, uma sensação de se sentir só mesmo acompanhada. A sensação de não pertencer a pessoa nenhuma, a coisa nenhuma. E quando eu digo coisa eu não falo a matéria presente, não falo do trabalho, da casa e nem da rua, porque essas coisas assim são muito fáceis de se estar, você senta, abre um livro, opera ações, cumpre tarefas, caminha, é mecanizado. Eu me refiro ao estar, ao pertencer além do material, refiro-me a sensação de estar interligada com as pessoas e seus mundos a parte, de estar ao lado, de se conectar.
    Mas quanto mais eu tento mais a repulsão é forte, é como os átomos. Eu não me atraio. 
    E lá se foram mais passos, passos e passos, logo ali na frente é a minha casa, veja. Eu entrarei, tomarei café e ficarei ali, pertencendo. Até que depois de amanhã eu volte a me sentir assim, sem pertencer. E isso não para, não termina. 
    "Aceitação é o primeiro passo", eu lembro. Mas não consigo aceitar.





Annabel Laurino 
   
   

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