Silêncio.
Silêncio.
Ah, agora sim.
Pelo menos os 75 degraus que subi até aqui valeram a pena, sim, eu contei. 75 degraus de subida depois do elevador até o topo do que eu posso considerar, majestosamente de 'o topo do mundo'. Claro, isso se você quer mesmo acreditar em mim, caso contrário eu posso ser mais realista e te falar que o meu 'topo do mundo' é bem mais embaixo, trata-se apenas de uma visão ampla de uma cidadezinha no final do mapa do país. Só isso. Embora só isso seria essa visão claramente deliciosa, que já me deixa contente. Olhe lá embaixo, perto da praça, o mesmo vendedor de churros que passa o dia marcando ponto no calçadão indo embora com a sua carroça meio desgastada de todos os dias ou os velhinhos logo mais a frente jogando xadrez nos seus típicos assentos descascados. Velhos, muito velhos, os bancos, é claro.
Agito, que agito! A cidade toda com as luzes acesas, final de dia, aquela loucura de corre-corre pra pegar o busão e ir pra casa assistir a novela, colocar a fofoca em dia com o marido ou fazer aquela jantinha gostosa com a receita tirada de uma revista folheada na sala de espera do dentista. Que beleza. A cidade acessa, hora de pico, os ônibus trabalhando seus motores a todo gás. E mesmo daqui de cima consigo ver suas fumaças tóxicas poluindo a cidade por ai. Os carros também, aquela poluição sonora do caramba, nunca para.
Só aqui em cima. Aqui, no topo de tudo, de todos eles, ninguém pode me ver e somente eu vejo a todos. Acendo o cigarro, só mais unzinho, prometo. O ar quente espirala pelo ar e sai pelas minhas narinas, entra nas minhas retinas, poros, tudo. Sou só eu e o cigarro amigo. A cidade nem sei, tão louca em euforia. Fico aqui, vendo a todos, aqui é silêncio puro, através dessa vidraça comprida e fria, as luzes refletem e voltam a todo instante e junto das buzinas gritantes lá fora há o frio inquieto, as árvores secas da praça, o verde, as pessoas atravessando as ruas, o mar de gente.
Te dizer que mesmo a vida lá embaixo sendo eufórica eu prefiro a curiosidade daqueles os mais escondidos, por assim dizer, pois eles não se escondem, eles só vivem nas suas caixinhas secretas com paredes como cascas de ovos e ali produzem uma vida que talvez muita gente nem imagine que eles levem. Você sabe, as pessoas dentro de suas casas. É, isso mesmo. Por exemplo, mais acima, no prédio bem a frente do meu eu vejo aquela senhora de meia idade colocando o café para passar na cafeteira e abrindo a porta da varanda para o seu Poodle de sei lá quantos anos, mais velho do que ela talvez, sair. Eu sei que por ela morar com o marido o café seja exclusivamente para ele, talvez ela goste de chá e se sim, imagino se ela não gosta de café, se ela só o prepara por causa dele. E logo na janela mais abaixo eu consigo ver um homem forte fazendo esteira na frente da TV, os dois filhos, creio eu, lutando no sofá da sala enquanto a esposa chega em casa e começa a gritar com todo mundo. Nas outras janelas, mais vida, vida que nunca acaba. Desde a mulher tingindo os cabelos na frente do espelho do banheiro até aquela que passa a roupa na sala enquanto fala ao telefone com a amiga e em outras mais janelas eu vejo o cara com a sua amante e em outra os adolescentes fumando no quarto escondido. Tudo isso num segundo só e todos eles ali, palpáveis, secretos em seus mundinhos e eu os descubro, os fantasio sem permissão. Sou uma intrusa.
18:38. O cigarro acabou faz tempo por isso acendo outro. Certo, eu disse que era só mais um, prometi até. Mas o meu lema é esse, não levo promessas a sério, as que eu faço, pelo menos. E com toda a minha força juvenil eu repito que esse será o ultimo e no more. Abro a janela mais um pouco e o barulho de fora vai entrando como se me jogassem uma tolha úmida na cara, é forte, é estrondoso.
No que eles pensam? O que eles querem? Para onde vão? O que está além do que realmente está ali? Hoje cedo a secretária da clínica médica me atendeu com os olhos vermelhos e cheios d'água. O que houve com ela? Ela nem segurava a caneta direito e na outra mão um lenço umedecido. Me pergunto se deu tudo errado com o noivo ou o pai morreu. Não tive coragem de perguntar. Talvez agora mesmo ela seja uma das formiguinhas ambulantes lá embaixo, entrando no ônibus apressada, ainda com os olhos inchados, ou dentro de um carro, ouvindo musica de cortar os pulsos e se questionando da vida enquanto detesta silenciosamente seu uniforme de trabalho.
Nunca vejo o tempo passar daqui de cima, mas o tempo passa, não, ele não passa, ele voa. As luzes se acendem gloriosas lá embaixo, cada vez mais. E as luzes dos prédios de moradia, são as pessoas chegando em casa. A vida toda num frenesi sem fim.
Mudo a posição e me debruço sobre o parapeito da janela, as cinzas caem lá embaixo, para lugar nenhum, sobre o vento. Eu poderia descrever a você o que me leva a crer quem sou eu agora, nesse exato instante em que falo, mas sou qualquer um, por exemplo, a pessoa que pega ônibus com você todos os dias, chego em casa e escrevo, como agora, essa escrita cheia de conotações cinzentas. Você não quer saber quem eu sou. Eu só estou aqui, fumando meu cigarro de todo dia, olhando pra você indo em direção ao seu caminho, entrando em algum lugar ou vivendo sua vida, vendo TV, quem sabe. Sou alguém que você esbarrou na fila do banco e não disse desculpa, ou quem te vendeu um sorvete ou até mesmo te deu uma informação sobre onde ficava mesmo aquela antiga relojoaria da cidade. Você nunca irá saber porque eu não me revelo, eu me encubro. Me escondo onde não podem me ver e assim, eu me intrometo.
Respiro fundo. Poluição por todos os lados, aqui, ali, lá e mais ao longe. A lagoa próxima trás uma brisa fresca que me consola. É bom aqui, tudo, desde os mínimos aos máximos detalhes. Tudo me conforta.
E por um momento, eu paro.
Silêncio.
Alguém me observa. Em uma janela acessa no prédio a frente, um ser tal eu que o olho me analisa, me fita, me contempla. Fui flagrada.
Ou vice e versa.
Uma buzina ressoa forte ao longe.
E continuamos.
Annabel Laurino
3 comentários:
As vezes observamos tanto que nem percebemos que podemos estar sendo observados também... ah solidão... ah um churros e uma namoradinha agora... haha
Solidão boa é aquela que acaba em churros e namorada, de preferência! ahaha
Solidão à tres hahaha :)
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