Você olha para o roupeiro totalmente bagunçado e solta um longo suspiro fitando a enorme bola desarrumada de roupas que você ainda não dobrou. Porém, em compensação, a parte dos sapatos esta toda em ordem, você acabou de arrumá-la. Lustrou cada um deles, esquadrinhou os pares em forma de cores, sapatos de inverno e verão, ajeitou-os na prateleira, e organizou os pares devidamente, lado á lado. E por um segundo você inveja aquela organização que você acabou de fazer, de uma forma estranha, você inveja profundamente. Por que você consegue arrumar os sapatos tão bem e as roupas não?
Então você pensa, pensa que poderia ser assim na sua vida, como quando você arruma e emparelha os sapatos na prateleira, todos devidamente lado á lado, ao seu canto. Poderia ser assim. Você bem que poderia ter esse dom de arrumar as coisas, de conseguir fazê-las dar certo e de se ajeitarem rapidamente. Mas, você, por incrível que pareça não consegue. Seu maravilhoso dom de arrumar os sapatos, mesmo que perfeitamente, não alcança as coisas supremas que rodeiam você.
Mas mesmo assim, você não ignora aquela sensação estranha e espalhafatosa que rodeia você desde a hora que você acordou. Ela fica se agitando como uma bola enorme e desengonçada, de cor rosa gritante, que fica quicando e pedindo atenção á sua volta, mas você não liga, é só mais uma sensação estranha...
Porém agora, agora que você se sente tão confuso, e mal-humorado por causa dos sapatos e de tudo mais, você olha com mais atenção aquela enorme bola rosa chamante que rodeia você. É estranha, mas ao mesmo tempo surte quase que um efeito reconfortante, como uma bola de chiclete ela dança e rodeia, e você aos poucos consegue traduzir aquela sensação.
Algo novo e inesperado se aproxima, você sente, todos os pequeninos fios de seu corpo sentem, algo grande, algo bom. Algo que você pediu á muitas noites atrás, uma vez sozinha no quarto falando com Deus, você pediu em meio á uma lágrima que corria de seu rosto, uma coisa boa, uma coisa que você desejava e iria esperar, pela qual lutaria com unhas e dentes e que suportaria tempo e dor, mas que queria, queria com afinco e amor. E agora, agora você consegue sentir-se perto do novo.
Uma sensação de enorme euforia percorrer seu corpo e você quase esquece os sapatos. Essa sensação é ilustre, e quase tudo começa se encaixar. Mas então, em meio á euforia, uma sensação idiota se aproxima, a incredulidade, aquela que esnoba as coisas boas que ainda não se pode ver. E depois o medo. Você olha a pilha de roupas desarrumadas, e vislumbra o calção velho que um dia ele vestiu, em uma noite em que teve que ficar na sua casa, era verão, calor, e ele precisava tirar a roupa quente, precisava também de um banho fresco, e tudo que você teve á oferecer foi um calção velho do seu pai, e mesmo que ele tenha ido embora, á muito tempo partido, você ainda guarda inutilmente o calção que um dia ele vestiu.
Tolice, não?
Mas, então o medo e a incredulidade se unem com a saudade... Como? Como você pode ir para o novo e abandonar tudo aquilo, tudo aquilo que você mais ama, é ele não? É a confusão. Os dias tentando encaixar o passado no presente, tentando sorrir sem saber para quem, que já não existe mais, tentando ver alguém presente do seu lado, quando esse alguém já foi. Então você lembra que esse alguém está muito bem agora, muito melhor que você, está segurando outra mão, e outra vida o acompanha nesse exato instante. Quanto á você, você está no meio do quarto, sentada no chão, ao lado de uma bola de roupas embaralhadas e uma prateleira de sapatos arrumados e lustrosos, você está com o calção que ele usou uma vez nas mãos, a expressão de dor nos olhos encolhidos reprimindo as lágrimas que você lembrou o gosto em segundos quando o imaginou chegar. E você se pergunta, eu preciso disso? Preciso mesmo? Preciso arrumar o passado no presente sendo que isso é impossível? Consigo?
A resposta é não. Não mais. Você não pode mais. Você deve seguir, precisa seguir. Você consegue.
O que isso tem haver com sapatos e roupas?
É tão simples, você consegue arrumar algumas coisas, mas sempre deixa outras para trás, você consegue aprender uma língua diferente, consegue ler milhares de livros em um mês, consegue juntar dinheiro para aquele verão no exterior que você tanto sonha, consegue milhares de coisas, consegue organizá-las e vive-las. Enquanto isso, você acumula um outro lado que você julga ser incapaz. As roupas. Você acha que não pode lidar com elas, por que parecem meramente mais complicadas, o trabalho de passá-las, dobrá-las, dividi-las em cores e tamanhos, em estações de uso, colocá-las em cabides e depois, ajeitá-las em pilhas e organizadas para que não despenquem. Tudo isso, você acha não ser capaz, como esquecê-lo, como seguir em frente, como aquelas promessas que você faz todo dia antes de fechar os olhos pela ultima vez. Tudo isso, que agora você pode.
Você joga o velho calção na sacola riscada com canetão azul, onde se lê “Doar”. E sorri. Você pode lidar com isso, mesmo que lá no fundo doa, mesmo que lá no seu intimo uma dor conhecida de desapego comece a apertar. Mas você sabe que é para seu próprio bem. Por que afinal, uma coisa nova, brilhantemente cor de rosa e escandalosa lhe espera bem adiante, você só precisa começar por um calção velho e daqui a pouco tudo começa a surtir efeito. Até você sentir o cheiro agridoce, do tão esperado... Novo. Para logo, começar á partir.
Annabel Laurino
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