Talvez tenha sido uma viagem sem grandes propósitos ter
vindo até aqui. Paredes cor de rosa não dizem nada, nem mesmo numa tarde de
ventania. Eu sento e penso em escrever, mas desisto. A ideia vem com um frase,
depois eu reorganizo os pares, mudo as sentenças de lugar, faço um novo trajeto
entre as vogais, entre as consoantes solitárias no meio do abismo das palavras.
Amanhã eu largo
meu emprego e volto a escrever.
Mentira. Acuso a mim mesma. Mentira. Os livros dispostos
nas estantes, intocáveis. Uma vida deixada pra trás. Volto a pensar no amanhã,
no emprego, na viagem sem propósito.
É que eles não entendem, me consolo com um copo de coca-cola,
quem diria, eles não entendem que não tinha a ver com o espaço, a umidade, as
paredes, o chão, a privacidade vendida de forma barata. Tinha a ver com uma
coisa antiga, que me fez lembrar numa coisa mais antiga ainda, como numa
prática de ancestrais, num velho e velho conto que alguém pode ter me contado
num outro tempo lá atrás. Como é que se diz. A palavra volta pra ponta da
língua e retorna ao palato duro, num vai e vem constante até que vem inteirinha.
Contemplação.
Tinha a ver com as janelas do lado de fora. No vão entre
um prédio e outro, pensar no porque construíram um vão entre uma fileira de
janelas e quem sabe, supor, que podem ser as escadas do prédio. A cor amarela,
que me lembra do Rubel, da cor mais certa é a amarela. Quem sabe. Amarelo e
branco. Os dois juntinhos assim, mas esse amarelo é desbotado, sujo, a chuva
veio e levou tudo, deixou um rastro preto nas paredes do condomínio inteiro.
Fico um bom tempo pensando no processo de tudo isso e
quanto tempo levou. Quanto tempo demora, quantas chuvas precisam vir, pro
amarelo ter desbotado.
Contemplo o gato gordo caminhando numa coleira pela grama
verdinha. Corre junto da dona feito cão. Eu olho pra gata ao meu lado olhando
através da janela junto de mim e penso que ela nunca se deixaria colocar uma
coleira, que reproduzir aquela cena seria impossível e sorrio, acho graça,
acaricio a gata assim, tão parecida comigo, um par de mim.
Esqueci de alguma coisa, eu sei. Esqueci de mim. Volto no
espelho, olho pra tudo menos pro fundo do olho. Olho pra cara branca, marcada de
vermelhidão recém acordada, olho pra sobrancelha, pro nariz, encaro meu próprio
nariz, mas olho, nunca.
O olho que é meu, vai dizer, eu sei, você me traiu.
Choro baixinho pra ninguém ouvir e abraço um livro
qualquer na promessa de que não trai, não trai, eu juro.
Mentira a minha, eu sei.
Amenizar danos, contemplar os escombros do que ficou. Amanhã
quem sabe eu largo o meu emprego e volto a escrever. Amanhã quem sabe eu volto.
Volto pra dentro de mim, em algum lugar
que devo ter ficado e me esqueci. Como faz pra voltar? É possível? Existe como?
Amanhã eu ligo pro psicólogo, tento adiantar a consulta,
preciso urgente encontrar a resposta. Dessa coisa, dessa coisa antiga, dessa
viagem sem volta, desses caminhos reversos, que eu teimosa e imatura, insisto
em dar.
A.L.