Volto
e escrever pra você, meu caro. Você, ao menos, não é um delator. Eu sou a
grande delatora de mim mesma. Com braços perfumados de flores que não conheço,
você me recebe.
Não
com entusiasmo, assim espero dessa vez. Não me receba com um sorriso no rosto,
nem com um abraço afetuoso. Não. Eu chego suja, em pura sujeira humana de mim.
Chafurdo
na minha própria lama. Mergulho num eu sombrio, encontro cascas e cascas.
Camadas sórdidas de um eu em erupção, insano. Estou ficando fora, estou ficando
dentro. A palavra loucura perdeu seu significado constituinte. Eu perdi meu
significado. O que eu, afinal, sou?
Amigo,
não precisa responder. Não precisa me dizer nada. Mas será que se eu te
entregar todo esse peso, você segura? Segura? Se eu te der essa minha sujeira
inteira, você pega? Me alivia de mim? No final das contas, eu quero redenção.
Chafurdo
no mistério. Tomo café e no reflexo do negro a luz da cozinha. No reflexo
do escuro, uma sombra se movimenta. Sou eu. Você, amigo, é outra coisa maior e
por isso eu te escrevo. Se eu bebo essa escuridão inteira, meu eu é escuro
feito breu, não me encontro. Você me encontra?
Respingos
de chuva na janela do quarto. Roupa atirada no chão. Uma música que não tocou.
Meu rosto deixado no espelho e esquecido ali desde as sete da manhã. Um rosto
cansado, sobrepujado de mentiras, maquiagens falsas, cílios compridos que não
tenho, boca vermelha que nunca terei. Aquele é o eu que eu sou no mundo. Que
ficou guardado no espelho, na minha retina desde a última vez que eu me vi. Um
eu que agrada as propagandas, agrada as mulheres na rua, os homens que passam,
as revistas que ditam. Um eu com medidas, tudo no lugar. Gente sentada na sala
da espera do psicólogo é feia. Eu, pro mundo, sou sanidade profunda, redentora
de mim, batom vermelho, perfume forme, meia calça fio 15, tá tudo bem. Um beijo
que não foi dado. Comida sonsa pedindo sal. Três palavras que insinuavam tudo,
mas que não foram ouvidas. Três palavras que diziam tudo. Tudo. Mas ninguém
ouviu. Eu sinto muito.
Caio
no chão do banheiro, as pernas frouxas, brancas, vermelhas. Vermelhas. No
azulejo eu estendo a mão. A água do chuveiro cai nos cabelos, nos olhos, na
boca. Disseram que eu sou toda água. Shampoo, condicionador, espuma. Gente com
cheiro humano é feio. Fedor é feio. E fede e fede. Ninguém gosta de cheirar.
Amigo,
a dor é humana, mas senti-la é fraqueza. Não sinto, dou passos incertos em consentimentos mudos de inimizades comigo mesma, com o
eu que eu sou. Hoje eu não falei comigo. Faz dias que não falo comigo. Não
quero me ouvir. O eu que tem dentro grita, e é insano. Ou insana? O gênero não
se aplica, nada se aplica. O eu não pode ser definido. Mas você entende, não é
amigo? Você, me recebe nua, sem a máscara que ficou pendurada no espelho, sem a
roupa parcelada em sete vezes no cartão porque preciso ser bonita. Você me
recebe ao todo, por completo, me deixa ser, sendo. Não é? Eu nem preciso saber
se sou mesmo, você sabe, você entende.
Nada
do que eu diga engrandecerá a sua existência tão infinita. Nada do que eu diga
realmente dirá sobre a sua bondade, meu caro amigo. Quando te escrevo, a
vergonha prende-se aos meus braços, trava a minha escrita. Na última carta, você
disse que não importava. Deveria escrever, escrever sem medo do meu eu, sem
vergonha, porque você sabia. Eu escrevo.
Arranho
as primeiras paredes dessa casa com as minhas unhas quebradiças. Barulho das
minhas unhas nas paredes descascadas. Cansei de todas as cascas, cansei de
todas as dores. E por isso dói ainda mais. Vasculho um chão sem cor, sem
cheiro. Adentro um vazio sem fim. Coisas construídas. O eu que eu sou é um
prédio inteiro construído pra mim. O eu é uma construção vacilante. O eu é um
grande possuidor de coisas. Prostituta de mim, vendi-me fácil durante algum
tempo. Vendi-me incessante em direção a coisas e disse, pra mim, que eu era
aquelas coisas. Construí um edifício inteiro assim, andares de coisas, quartos
de coisas, senti-me dona de mim, olhei-me no espelho e disse: esse sou eu. Não
era. Nunca foi. E você sabe.
Grande
amigo, só você compreende as marcas desses ponteiros do tempo sobre mim. As
linhas de expressão. As dúvidas que eu não dei voz. Assenti, continuei. As
linhas costuraram-se na minha pele, rastros de medos, de inseguranças. Na minha
testa, as marcas do tempo de dúvida, do tempo de medo. Nos meus olhos as noites
sem dormir esperando um dia chegar, o tempo passar, o medo mais uma vez em
marcas roxas, em linhas cinzentas, em veias arroxeadas nas pálpebras trêmulas
de cansaço, esgotamento, implorando por algo sem saber o que. Eu não sou essas
linhas, essas cores, essas marcas. Mas minha pele, essa capa, esse corpo, me
entregam. Delatores de mim.
Não
importa. O eu de dentro é quem escreve.
O eu marcado pelas linhas, pelas cores. O eu cansado, calado, com
dúvidas, com medos. O eu que não entende. Amigo, essa carta é para você saber,
antes de mim, que eu me despeço. Sozinha eu vou na sua direção porque me sinto
só. Choro, choro tanto porque dói esse desprender-se.
Parto
para outro país com a intenção de destruir esse edifício inteiro que sou. Quero
a sua ajuda, juntos colocar abaixo todo um eu de coisas, um eu de paredes mal
pintadas, portas arrancadas e janelas tortas. Só assim serei.
Não
pego coisa alguma, nem caneta, nem papel. A boca que tenho falará por si tudo
aquilo que precisa. Vens me buscar? Te espero. Uma luz que sobe toda manhã, um
calor. Outono, folhas secas, avermelhadas, amarelas, cheiro de terra úmida após
a chuva, o vento no lusco-fusco de um dia em agosto, ou setembro. O mar, as
cores do mar embaixo do sol refletindo a superfície da água que mais
parece feita de plástico, tudo tranquilo, maré baixa. A espuma das ondas
condensada em branco puro. Você é todas essas coisas, amigo. Eu me pergunto
como, algum dia eu pude me enganar que controlava algo. Como pude acreditar nesse algo, quando você é o tempo todo.
Afasto-me
aos poucos de mim. Penso em você, bonito como uma maçã recém colhida, como uma
música tocada, um acorde de violão, um som, uma palavra nova, um cheiro de chá,
chá de hortelã, banho quente, o conforto de um abraço. Pensar mais em você e
menos em mim é pensar em ser. Me distancio do ter. Aos poucos coisas são
lembranças vazias, confusas.
Amigo,
iremos juntos?
Voltarei
a escrever.
Annabel
Laurino